domingo, 20 de junho de 2010

Eisenstein e seu tempo; o tempo em Eisenstein


Eloiza Gurgel Pires



Tempo e narrativa

O tempo é um tema recorrente na tradição filosófica, nos escritos dos poetas e nos ensaios dos historiadores. Jorge Luis Borges, contista e poeta argentino, nos diz: “O tempo é a substância de que sou feito. O tempo é um rio que me arrebata, mas eu sou o rio; é um tigre que me despedaça, mas eu sou o tigre; é um fogo que me consome, mas eu sou o fogo” (BORGES,2005,P.166). Para o autor, os homens inventaram a metafísica, seja de caráter filosófico, seja de caráter religioso, porque tomaram consciência do tempo. Mas o que é o tempo? Como experimentamos o tempo? Existe diferença entre memória e tempo vivido? Existe um tempo que não seja o tempo vivido? Essas questões que buscam definir o tempo conceitualmente extrapolam os domínios exclusivos da Filosofia quando encontram na arte, na literatura, no cinema expressões de linguagens que estruturam a temporalidade não objetivamente, mas como narrativa, na constituição da história a partir da rememoração. Em um território fronteiriço entre o pensamento e o imaginário descobre-se variadas espessuras de durações, de ritmo e de entrelaçamentos temporais em obras que nos dão acesso a um conhecimento sensível, a uma dimensão cultural não explicitamente formulada nas demais construções “racionais” (ciência e filosofia). Aí, benjaminianamente falando, o tempo se inscreve como intensidade e não como cronologia, em um processo não linear em que contar uma / a história é inventar, ensaiar, construir, reconstruir sentidos. Indagar sobre o tempo é então, interrogar sobre a temporalidade inscrita no âmago da narração, que “[...] mergulha as coisas na vida do narrador para depois as ir aí buscar de novo” (BENJAMIN, 1992, p.37). Há desse ponto de vista, articulada pelo sujeito narrador, uma relação não exterior, mas intensiva “das coisas” com o tempo, e do tempo “nas coisas”.

A partir desse campo de reflexão discutirei o cinema de Sergei M. Eisenstein (1898 – 1948), cineasta russo que se tornou um marco na história do cinema, pela sua eloqüência ao formular aquilo que posteriormente ficou conhecido como “montagem intelectual” ou “montagem dialética”, em uma nova articulação do tempo no cinema das primeiras décadas do século XX. Para tanto, tentarei estabelecer um diálogo entre os campos da Arte, da História e da Comunicação, tendo como propósito abordar o caráter narrativo da experiência temporal no cinema de Eisenstein, contextualizando a obra do artista no tempo histórico em que esta foi produzida.

Não é preciso ser um “entendido” em cinema para já ter visto ou ouvido o nome de Eisenstein associado aos processos de montagem cinematográfica ou a produções como O Encouraçado Potemkim que estabeleceram uma ponte entre as vanguardas artísticas e as lutas do povo soviético no início do século XX. Sua história está intrinsecamente relacionada à Revolução Russa de 1917 e a uma narrativa cinematográfica não apenas voltada para os fatos em si, mas para as idéias, conceitos que envolviam os fatos. Importante lembrar que não era objetivo do cineasta apenas recontar em seus filmes as histórias da Revolução Bolchevique, mas levar os espectadores a uma experiência dialética em que a sobreposição de imagens nos procedimentos de montagem resultaria em dois opostos contraditórios (uma tese e uma antítese). Segundo Deleuze, “Eisenstein confere a dialética um sentido cinematográfico” (DELEUZE, 1983, p.46), ou seja, o cineasta não apenas representa, mas assume o pensamento revolucionário na forma do filme. Afinal, parafraseando Maiakowsky, sem forma revolucionária não há arte revolucionária. Em seus filmes, para além do conteúdo ideológico, interessa-me, especialmente, as intertextualidades, os desvios de um discurso pedagógico e doutrinário relacionado ao bolchevismo para uma narrativa polissêmica rica em alegorias e metáforas, bem como os modos como o autor articula a tradição e a modernidade em suas produções, opondo-se ao didatismo socialmente responsável do cinema educativo soviético que defendia uma noção de progresso na qual o passado era reduzido a tábula rasa.

Inspirado por um quadro de Paul Klee, Walter Benjamin descreve o anjo da história a partir das ruínas de seu presente. Assim como Benjamin em sua famosa Tese Sobre a Filosofia da História, por um caminho diferente, Eisenstein buscou a re-inscrição do velho no novo, a apropriação do melhor da tradição pictórica, teatral, literária em sua obra como um traço que definiria o seu posicionamento no debate cultural e político de sua época. Na sobreposição de imagens é instaurada outra temporalidade em uma apropriação da linguagem cinematográfica que foi / é uma referência para os artistas modernos e contemporâneos.

A compreensão de que linguagem e tempo são inseparáveis é fundamental para o entendimento do cinema eisensteiniano. Seguindo os rastros de Santo Agostinho (354-430) é possível identificar alguns aspectos importantes dessa relação. A análise agostiniana sobre o tempo, não é realizada apenas em termos cosmológicos, como medida de movimento. Relacionando a identidade narrativa à memória e ao tempo, o filósofo afastou-se da perspectiva de Aristóteles que defendia a objetividade do tempo. Trata-se, como também Benjamin propõe, da temporalidade inscrita em nossa linguagem, ou nos modos como narramos nossas memórias; na fala comum e na maneira como intuímos o que é o tempo. O Kairós, essa intensificação da temporalidade humana opõe-se a concepção do Chrónos, tempo cronológico, ou o tempo “homogêneo e vazio” (W. Benjamin). Vejo aqui, as descontinuidades da montagem dialética de Eisenstein em contraste com a narrativa linear das produções do americano David Griffith, ou daquelas produções que possuíam a função estritamente pedagógica de “educar” – de forma clara e sem ambigüidades – o povo para a construção da nova sociedade socialista soviética.

Os tempos como afirma Santo Agostinho, existem na mente – o que em sua reflexão equivale a dizer na alma. Como em Benjamin, a singularidade do seu pensamento está no entendimento do tempo a partir da linguagem. A linguagem articula o tempo, assim como o tempo articula a própria linguagem. “Pensar o tempo significa, portanto, a obrigação de pensar na linguagem que o diz e que ‘nele’ se diz” (GAGNEBIN, 1999, p.75). Pensar o cinema de Eisenstein significa pensar o seu tempo e o tempo que nele se diz.

Eisenstein e seu tempo

A inserção do artista russo em seu tempo associa-se às manifestações da modernidade que emergia nas primeiras décadas do século XX. O início deste século configurou-se como um momento extraordinariamente fértil e turbulento. As vanguardas históricas traziam novas propostas artísticas que compartilhavam da atitude de repúdio à tradição, um desejo de renovação que, além dos gestos vanguardistas de artistas e intelectuais, estava implicado em um forte movimento de revoluções, guerras e reconstruções. Valores que até então eram tidos como inquestionáveis passam a ser postos em xeque suscitando transformações sociais, políticas e econômicas paralelamente ao desenvolvimento do pensamento filosófico e científico. Concomitante a esse desejo de renovação em praticamente todos os campos, há o colapso de sistemas e valores autoritários tradicionais.

Segundo o historiador Eric Hobsbawm “Parecia óbvio que o velho mundo estava condenado. A velha sociedade, a velha economia, os velhos sistemas políticos tinham, como diz o provérbio chinês ‘perdido o mandato no céu’. A humanidade estava à espera de uma alternativa” (HOBSBAWM, 2008, p.62). Para o historiador, representavam essa alternativa os partidos socialistas com apoio das classes trabalhadoras, e o sinal para os povos se levantarem e substituírem o capitalismo pelo socialismo foi dado com a Revolução Russa de 1917 que, tornou-se tão fundamental para a história do Século XX quanto foi importante a Revolução Francesa de 1789 para o século XIX.

Em março de 1917, com a abolição do governo do czar Nicolau II, ocorreu o que posteriormente seria chamado de primeira fase da Revolução Russa. As diretrizes da teoria socialista defendiam um novo modelo de governo conduzido pelos trabalhadores do campo e da cidade, vítimas das desigualdades econômicas e sociais. Em Moscou, intelectuais e artistas de vanguarda sonhavam com o novo mundo ideal prometido pelos bolcheviques; discutia-se a necessidade de se criar uma cultura tipicamente proletária; pensava-se a arte e seu significado para a população.

Se por um lado os artistas das vanguardas russas viveram um período de grande liberdade, por outro, eram reprimidas as manifestações culturais e expressões artísticas tradicionais. Estava aí embutida a idéia do mito do progresso, como aparato ideológico do pensamento marxista, que prenunciava um futuro glorioso para os trabalhadores, execrando um passado opressor. Várias medidas voltadas para a área cultural foram tomadas, dentre as quais se destacam a abolição da Academia de Belas Artes, um dos símbolos do czarismo; a fundação do Departamento de Artes, a IZO e a criação do Proletkult (cultura proletária).

Nesse cenário, o jovem artista russo Sergei Mikhailovich Eisenstein, ex-combatente do exército vermelho, tomado pelos ideais de reconstrução da nova sociedade socialista soviética e em consonância com as vanguardas históricas de sua época, ingressa no Proletkult como diretor teatral, encenador e cenógrafo dando início a sua teoria de montagem no teatro, o que posteriormente iria experimentar no cinema.

O cinema era invenção recente, produto que reunia, em um encontro histórico, o teatro, o music hall, a pintura, a fotografia e outras expressões da técnica e da arte no ocidente industrializado. Os primeiros filmes realizados eram mudos, e a reação da platéia era de curiosidade pela nova realidade das imagens em movimento nas produções dos irmãos Lumière ou de Meliès – paisagens do cotidiano; trens; operários saindo das fábricas; a história fantástica de uma viagem à lua –, imagens que compreendiam uma seqüencia de acontecimentos ordenados, ficcionais, “reais” ou imaginários que se colocavam diante de uma câmera imóvel. Os filmes eram seqüencias lineares de tomadas estáticas, como no teatro, dentro de um enquadramento imóvel.

Como nos diz Carrière, surge uma linguagem autenticamente nova quando os cineastas começam a cortar o filme em cenas estabelecendo uma relação invisível entre uma cena e outra. Surgem novas possibilidades narrativas. Temporalidades são entrelaçadas. É o nascimento da montagem e da edição. Nas primeiras exibições realizadas com os filmes “montados”, muitas vezes era preciso que alguém permanecesse ao lado da tela para explicar o que estava acontecendo, traduzindo o novo vocabulário imagético e articulando para os espectadores a nova gramática das imagens em movimento. Essa experiência produziu, segundo Benjamin, um novo sensorium nos modos de percepção da realidade na sociedade moderna. A experiência da reprodutibilidade técnica da imagem no cinema estabeleceu, no imaginário do homem do século XX, outra relação com o tempo. É também o que afirma Hobsbawm em Era dos Extremos, quando diz que o homem do século XX não teria sido o que foi / é se não tivesse entrado em contato com as imagens em movimento. As telas audiovisuais foram /são incorporadas ao cotidiano das pessoas como espaços de construção de identidades, de memórias, de histórias.

Atribui-se ao americano David Griffth, nos primeiros anos do século XX, as várias inovações na forma de se fazer cinema, mas é na Rússia soviética dos anos 1920 que alguns cineastas (Kulechov, Pudovkin, Bela Balazs, Dziga Vertov, Eisenstein) engajados na construção do socialismo vislumbram no cinema mudo a possibilidade de promover um salto para uma outra modalidade discursiva, fundada numa sintaxe de imagens, nesse processo de associações mentais que recebe, nos meios audiovisuais, o nome de “montagem” ou “edição” (MACHADO, s. d.). Considerado o mais eloqüente desses cineastas, Eisenstein, formulou, no final dos anos 1920, a sua teoria do cinema conceitual, cujos princípios ele foi buscar no modelo de escrita das línguas orientais e nas suas experiências iniciadas no teatro.

Os novos procedimentos de montagem no cinema, seguidos dos novos processos narrativos, são introduzidos no início da década de 1920 com um misto de entusiasmo e estranhamento. Nessa época, Jean Epstein, na França e outros artistas em diferentes países realizavam experimentações a partir de suas observações sobre os processos de produção e princípios constitutivos da poesia ou das artes plásticas no mundo moderno. Justaposição, descontinuidade, fragmentação do espaço-tempo, tomadas em oposição ao encadeamento linear e ao princípio de continuidade, são elementos dessas linguagens que aproximam futurismo, cubismo, construtivismo e outras propostas do início do século em sua resposta ao mundo técnico das invenções, aos desvios da vida “simultaneísta” da cidade (XAVIER, 2006, p.359-360).

A densidade teórica do cinema soviético, em especial do cinema de Eisenstein, ofereceu a poetas, pintores e modernistas em geral, os instrumentos para pensar o princípio da montagem em suas experimentações tendo como referência para os movimentos da arte moderna as produções cinematográficas. A teoria de montagem em Eisenstein, quando começa a ser construída no Proletkult, expõe uma concepção de espetáculo considerada afinada com o espírito da Revolução. Este novo espetáculo, tal como outras formas de cultura popular urbana, toma como referência o teatro de variedades; o show de cabaré; o music hall e o cinema do início do século que descobria os efeitos da nova técnica e que se apropriava do burlesco, uma forma de teatro de improviso descendente direto da chamada Commedia dell'arte. Em 1923, em seu artigo-manifesto Montagem de Atrações Eisenstein escreve:

A atração (do ponto de vista teatral) é todo aspecto agressivo do teatro, ou seja, todo elemento que submete o espectador a uma ação sensorial ou psicológica, experimentalmente verificada e matematicamente calculada, com o propósito de nele produzir certos choques emocionais que, por sua vez, determinem em seu conjunto precisamente a possibilidade do espectador perceber o aspecto ideológico daquilo que foi exposto, sua conclusão ideológica final (EISENSTEIN apud XAVIER, 2005, p129).

O texto de Montagem de Atrações é escrito a partir da encenação de uma peça de Ostrovski. Afinando-se com o pensamento do dramaturgo Meyerhold de quem foi discípulo, neste manifesto, Eisenstein inicia suas reflexões em torno de sua primeira teoria da montagem, na qual o artista distingue o teatro narrativo-representativo do teatro de “agit-atrações”. O primeiro, ligado a artistas da ala direita, preso a imitação dos fatos em uma representação naturalista não seria eficiente para discutir ideologicamente as propostas do espetáculo. A esse teatro Eisenstein opõe a noção de “Espetáculo de Atrações”. Nessa proposta há a recusa do teatro psicológico de Stanislavsky e da continuidade da ação. A palavra é retirada do centro e o texto é nivelado com outras linguagens (gestual, cenográfica, visual, sons e luzes) que se impõem pela agressividade na montagem feita com precisão geométrica e movimento constante dos atores no palco: “[...] Os atores em patins carregavam não apenas a si mesmos pelo palco, mas também seus ‘pedaços da cidade’” (EISENSTEIN, 1990, p.22). A introdução de artifícios manipuláveis rompe com o projeto ilusionista transformando os fatos representados em uma atração entre outras. O texto é manipulado, como mais tarde, no cinema, Eisenstein irá manipular as imagens. Era preciso chocar o espectador para “guiá-lo na direção desejada”, para tanto, parte-se de uma experiência impactante, com ares de modernidade, tendo como alvo a estrutura psíquica da platéia. Eisenstein opta pelo teatro popular contra o que considera teatro burguês. Corpo humano e objetos cênicos se igualam como “atrações”, unidades de um espetáculo no qual, as sucessivas atrações produzem um impacto no espectador que fará uma leitura do espetáculo marcada pela descontinuidade.

Segundo Ismail Xavier, de forma provocativa, o manifesto apresenta uma concepção de atividade artística como “engenharia social” (XAVIER, 2006,p.361). A tendência construtivista está aí inserida, assim como no contexto soviético dos anos 1920, enquanto desdobramento da vanguarda, como uma postura ideológica diante dos avanços técnicos em um país voltado para a construção de uma nova ordem social.

Artistas ligados principalmente ao Construtivismo e ao Suprematismo tiveram um importante papel na primeira fase da Revolução. Para Aaron Scharf, o Construtivismo era, de fato, “vermelho” (SCHARF, 1994, p. 116). Uma forte tendência modernista acompanha os intelectuais contra o velho regime dos czares. O desenvolvimento industrial por um lado, aponta para um interesse crescente pela cultura ocidental, especialmente a de Munique e da França; por outro, não podendo dispensar a contribuição dos trabalhadores, demanda o interesse dos intelectuais pelo povo, suas tradições, suas capacidades criativas inatas.

A partir de 1915, o Suprematismo de Malevich e o Construtivismo de Tatlin são as duas grandes correntes que se inserem no amplo movimento da vanguarda revolucionária russa, liderada por Maiakowsky e oficialmente sustentada por Lunacharsky, chefe da política artística do bolchevismo.

Malevich pesquisa metodicamente a estrutura funcional da imagem. Chega, em 1913 à formulação da poética do Suprematismo: identidade entre idéia e percepção, fenomenização do espaço num símbolo geométrico, abstração absoluta (é o rompimento com a tradição de representação figurativa na arte). O que o artista propõe, de acordo com a revolução social e política em andamento, é uma transformação radical, sem dúvida. Em sua arte a verdadeira revolução não é a substituição de uma concepção de mundo decadente por uma nova concepção: é um mundo destituído de objetos, de passado ou de futuro, uma transformação radical em que o objeto e o sujeito são igualmente reduzidos ao “grau zero”.

A posição de Tatlin não difere tanto da de Malevich, mas tem em vista uma intervenção no campo social. Trata-se de um programa de ação política no qual a arte deve estar a serviço da revolução, fabricar coisas (roupas para os operários, objetos, móveis, etc.) para o proletariado, como antes fabricava para os ricos. A hierarquia de classes deve ser abolida como qualquer distinção que leve a isso; a pintura e a escultura também são construções (e não representações) e devem, portanto, utilizar os mesmos materiais e os mesmos procedimentos técnicos da arquitetura, que por sua vez, deve ser funcional e visual (ARGAN, 1992, p.326).

Nos projetos de fotomontagem ou nos cartazes (a poética de Maiakowsky, as fotomontagens de artistas como Rodchenko) os artistas utilizavam formas geométricas e fragmentos de imagens como referências concretas da realidade. Os construtivistas vislumbravam um novo mundo, em que o artista, ou o designer, deveria trabalhar junto ao cientista e ao engenheiro. Para esses artistas a utilização de formas geométricas em áreas uniformes de cores puras possuía a aura da racionalidade, uma ordem que pretendiam impor à sociedade. O que estava de acordo com a afirmação de Marx de que o modo de produção da vida material determina os processos sociais, políticos e intelectuais da vida. Os construtivistas acreditavam estar criando uma estética que refletiria sua época.

Inicialmente Eisenstein abraça essa teleologia, acreditando na possibilidade da arte enquanto “engenharia social”, mas nos anos 1930, já no cinema, ele vai negar tal posição, divergindo de intelectuais, artistas e figuras de destaque como Maiakowsky e Aleksei Gan, o ideólogo do Construtivismo, que a partir das concepções advindas do Futurismo defendiam uma noção de progresso que exigia que se virasse as costas para passado, reduzindo-o, como propunha Malevich nas formas do Suprematismo, a “grau zero”. A defesa por uma nova linguagem que se afastasse do clássico cinema americano será um ponto de convergência que o aproximará do cineasta Dziga Vertov, no entanto, este o acusará de estar assumindo os males e as mentiras da tradição da cultura burguesa a partir de uma idéia decadente de espetáculo que precisaria ser abolida naquele momento de construção de um mundo novo. Por outro lado, Eisenstein, mesmo nas suas divergências com o Construtivismo, não deixa de assumir o teatro popular e suas atrações pelo impacto que causam no espectador e pelo seu poder de sedução, pois para ele o aspecto sensorial do espetáculo não está desligado da idéia de “passar conceitos” em uma ação ficcional criada pelos procedimentos de montagem:

As lutas corporais entre operários e repressão em A greve, a cosntelação de atrações na seqüencia da escadaria de Odessa em Potemkim, a seqüencia da procissão e da chegada da desnatadeira para os camponeses de O velho e o novo são exemplos de sua [de Eisenstein] estratégia apoiada na emoção. Ele não recusa os processos de dramatização e manipulação dos sentimentos que a cultura burguesa a partir do século XVIII colocou à disposição do espetáculo dirigido a um público plebeu, se não operário (a partir do século XIX) (XAVIER, 2006, p.362).

Sua posição difere da de Vertov e da de outros artistas pela liberdade como se apropria das expressões da cultura clássica articulando-as aos dispositivos do teatro moderno. Estudioso da arte renascentista e influenciado pelo teatro burguês, sua busca é por uma nova conexão entre o sensível e o inteligível, a imagem e o conceito. Na dissolução dessas dicotomias, me parece, essa busca estar próxima do que propõe o pensamento benjaminiano no tocante às quebras de binarismos e quando reconhece uma constelação revolucionária entre o presente e o passado. Ao contrario do moderno “avançar sempre”, esse continun que alavanca o pensamento do progresso na arte e nas concepções ideológicas do início do século XX, o tempo em Eisenstein é outro: é o descontinun. O cineasta não vê a possibilidade de não estarem articulados a tradição e a modernidade no tempo presente. Nessa articulação a linearidade do tempo é quebrada e são postos em conflito sentidos antagônicos. Como o anjo benjaminiano o cineasta russo não vira as costas para o passado, vai trabalhar com o caos e com os cacos, ruínas de sua época, um presente “carregado de ‘agoras’” (BENJAMIN, 1992, p.166). Nesses espaços descontínuos, como diria o indiano Homi Bhabha, surgem entre-lugares, algumas intertextualidades, como no filme O Encouraçado Potemkim, na famosa seqüencia da escadaria de Odessa, quando uma mulher do povo carregando nos braços seu filho morto, depois de ter sido pisoteado no massacre, se dirige à guarda czarista desesperadamente em um apelo aos seus sentimentos. Em uma citação à Pietá de Michelângelo, os gestos da personagem confrontam o espectador com uma situação na qual um forte simbolismo religioso marca, de forma dialética, tanto a posição dos opressores quanto a dos oprimidos na cena. Aqui, a expressão da arte renascentista está reinscrita em uma outra constelação histórica, ganhando outros significados.

Em Uma aproximação dialética à forma cinematográfica (1929), também conhecido como A dramaturgia do filme, Eisenstein tenta conciliar o pensamento inspirado na dialética marxista com a militância construtivista. Mas em um momento posterior, a montagem, em sua natureza espetacular e impactante, ganha um caráter associativo. Até alcançar alguns desdobramentos e chegar ao chamado “cinema intelectual”, deslocando a montagem do terreno da ação para o terreno da significação. Com a descontinuidade busca-se filmar o invisível. Desse modo, os filmes de Eisenstein ganham uma complexidade que os torna menos didáticos, as dificuldades de entendimento dos filmes multiplicam-se entre o público, e as autoridades passam a demonstrar o seu descontentamento apontando a abundância de metáforas abstratas como fator que diminuía a mensagem e o conteúdo propagandístico. Eisenstein foi duramente criticado e perseguido pelo governo de Stalin, após a morte de Lenin e a queda de Lunacharsky. Algumas de suas obras foram proibidas como O Encouraçado Potemkim (1925) e Ivan o Terrível (1946).

Antes mesmo que O velho e o Novo estreasse em Moscou em outubro de 1929, Eisenstein partiu em uma viagem ao exterior, para estudar o cinema sonoro; viajou pela Europa dando cursos, ministrando palestras, até ser expulso de Paris, por haver restrições do governo parisiense com relação ao fato do cineasta ser considerado um comunista. Partindo para os Estados Unidos, Eisenstein fará contatos em Hollywood com um escritor chamado Upton Sinclair, que irá sugerir que uma produção russomexicana fosse iniciada. Que Viva México! seria o nome do novo filme de Eisenstein. Mas as filmagens foram canceladas em novembro de 1931, quando Sinclair recebeu de Stálin um telegrama comunicando que Eisenstein era tido como um desertor pelo Estado Soviético. De volta a Moscou, ele encontra outro cenário. A nova burocracia que se instalou negou à arte qualquer autonomia de pesquisa e de orientação, reduzindo-a a um instrumento de propaganda política e divulgação cultural. O Realismo Socialista passa a ser a arte oficial, as expressões das vanguardas artísticas são reprimidas e a velha academia é re-valorizada.


O tempo em Eisenstein


Tendo estudado os filme de Griffith, as experiências de montagem de Lev Kuleshov e as técnicas de re-edição de Esfir Shub, Eisenstein convenceu-se de que no cinema se podem manipular espaço e tempo para criar novos significados, especialmente se as imagens não estiverem somente ligadas, como Kuleshov sugeria, mas justapostas. Afirmando que “a cinematografia é, em primeiro lugar e antes de tudo, montagem” EISENSTEIN, 1990, p.35), o realizador de O Encouraçado Potemkim compreendia o espaço da tela cinematográfica não como uma janela para a realidade, ou como um espaço transparente em que as imagens aparecem como impressão desta “realidade”, mas como a possibilidade de estarem articulados sentidos muitas vezes antagônicos que, na justaposição de imagens, instigam o espectador a construir um olhar sobre as ambigüidades e contradições não dos fatos em si, mas dos conceitos, idéias que envolvem a realidade desses fatos. Diferente do Kino-glaz (cine-olho) de Vertov que via o cinema como “fábrica de fatos”, captação e re-elaboração industrial dos acontecimentos do mundo (XAVIER, 2003, P.178), Eisenstein pretendia criar uma forma de pensar o real e não mostrá-lo objetivamente. Nessa perspectiva a montagem é uma forma-pensamento com temporalidades e espacialidades próprias.

Ao referir-se ao cinema de Eisenstein Gilles Deleuze afirma que “A montagem é a composição, o agenciamento das imagens-movimento enquanto constituem uma imagem indireta do tempo” (DELEUZE, 1983, p.39), ou seja, a montagem eisensteiniana que tem como objeto as imagens-movimento produz uma temporalidade que não é aquela do encadeamento linear das narrativas tradicionais. Nesse sentido, opondo-se ao cinema clássico narrativo e às teorias de Kulechov e Pudovkin, Eisenstein propõe uma montagem que rompe a linearidade do fluxo de acontecimentos e quebra a continuidade do espaço diegético, transformando-o em uma exposição de idéias. Sem obedecer a uma causalidade linear, em seu cinema encontra-se a justaposição de planos, ao invés de encadeamento.

A descontinuidade dos planos vai gerar o entrelaçamento de temporalidades diferentes e difusas. Em Eisenstein a intensidade do passado e do futuro está em um presente dilatado, no próprio todo que, segundo Deleuze, é a montagem do filme. A construção de uma realidade dialética não para de crescer: “As coisas mergulham verdadeiramente no tempo, e se tornam imensas, porque aí ocupam um lugar infinitamente maior que aquele que as partes têm no conjunto, ou o conjunto tem em si mesmo” (DELEUZE, 2005, p.46-47). O conjunto e as partes de Potemkim: 48 horas, ou de Outubro: 10 dias, ocuparam no tempo, isto é, no todo, um lugar sem medida, prolongado. Não há uma referência externa, as atrações são o próprio prolongamento ou esta existência interior no todo. Deleuze chama atenção para o fato de que o tempo em Eisenstein, ao mudar de perspectiva, atribui aos seres reais um lugar desmesurado no qual tanto o mais longínquo passado quanto o futuro profundo participam do movimento de sua própria revolução. Essa consciência revolucionária em Eisenstein nos remete a Benjamin, quando este escreve em sua Tese XVII que o defensor do materialismo histórico (penso que Eisenstein esteja inserido nesta definição) aproxima-se de um objeto histórico se este se apresentar como mônada: “Nessa estrutura ele reconhece o sinal de uma paragem messiânica do devir, dito de outro modo uma oportunidade revolucionária no combate pelo passado oprimido” (BENJAMIN, 1992, p.168). Esse círculo ou espiral dialética, “monismo”, que Eisenstein opõe ao dualismo de Griffth, carrega em seu bojo, como nos diz Gagnebin, a idéia de totalização a partir do próprio objeto e nele, da referência a uma pré e pós-história irredutíveis a um tempo cronológico, homogêneo e vazio.

A partir da descontinuidade e por meio de uma prática sistemática de disjunção, na montagem eisensteiniana a interrupção na evolução dos acontecimentos abre uma brecha no encadeamento das ações e são inseridas outras imagens, construções metafóricas que comentam determinados fatos. Em Potemkim, na seqüência em que no navio, a minoria bolchevique é coberta com uma lona para ser executada, aparece nas alturas do convés, um pastor – figura estranhíssima, quase demoníaca, de olhar obsessivo – que brada: "Senhor, fazei-os voltar à obediência", numa demonstração de apoio ao status quo. Nessa seqüência, se comenta as relações da igreja com as armas do poder: Um close passeia por vários elementos repertoriais metálicos: mostra uma cruz na mão do pastor (símbolo do poder eclesiástico), passa para a espada (arma branca) de um oficial (poder imperial), para as armas de fogo (arma negra) da guarda (poder militar) e em seguida para a corneta (voz metálica).

A representação dos fatos não obedece a um critério naturalista. A interpretação estilizada dos atores (a maioria do elenco dos filmes de Eisenstein era composta não por atores profissionais, mas por pessoas do povo) compõe tipos sociais, agentes históricos, e os planos montados para uma mesma ação são interpostos de um modo descontínuo, com a repetição de gestos e a abundância de detalhes que fixa o instante e distende a temporalidade do acontecimento. Em Outubro, a ponte que liga o centro de São Petersburgo é elevada para reprimir o movimento de manifestação dos operários. A montagem eisensteiniana não mostra o fato simplesmente na sua continuidade – a ponte se levantando, mas cria um espaço-tempo capaz de fazer com que nosso olhar se detenha em várias direções acompanhando eventos simultâneos. Não há uma representação naturalista do fato. Em um tempo-espaço descontínuo e com eventos simultâneos o fato ganha uma significação social “figurada” pela visualidade que essa montagem possibilita. A respeito da montagem figurativa Eisenstein afirma que “o cinema de Griffth não conhece este tipo de construção na montagem (o figurativo). [...] Griffth permanece sempre no nível da representação e objetividade, e nunca tenta formar um significado ou uma imagem através da justaposição de planos” (EISENSTEIN, 1990, p.240).

A montagem paralela de Griffth também é criticada por Eisenstein por constituir uma visão dualística do mundo na qual duas linhas paralelas (rico e pobre) correm em direção a uma hipotética reconciliação. O contexto histórico da Rússia revolucionária propiciou o surgimento de uma forma de montagem que se contrapôs a visão de Griffth, valorizando o conflito, o pensamento dialético. Nesse contexto, Eisenstein irá buscar “[...] uma visão do mundo tanto monística quanto dialética” (EISENSTEIN, 1990, p.198). Vale ressaltar que houve dois momentos distintos no cinema eiseinsteniano: no primeiro há uma busca excessiva pelo conflito de imagens, e no segundo a justaposição de imagens conflitantes cede lugar à acumulação de duas ou mais imagens que juntas resultarão em um conceito, quando surge a idéia de imagem-conceito, expressa no chamado “cinema intelectual” em filmes como Outubro, posteriores a O Encouraçado Potemkim.

Uma seqüência de Outubro na qual são combinadas diferentes imagens da divindade com letreiros e estatuetas de Napoleão é comentada por Eisenstein que prenuncia o que seria a montagem intelectual:

Mantendo a denotação de ‘Deus’, as imagens crescentemente discordam de nosso conceito de Deus, levando inevitavelmente a conclusões individuais sobre a verdadeira natureza de todas as divindades. Assim, uma cadeia de imagens procura alcançar um raciocínio puramente intelectual, resultante de um conflito entre o preconceito e seu descrédito gradual a cada passo intencional.

Para Eisenstein, a imagem como unidade complexa ultrapassa o caráter denotativo das representações e propõe uma significação para determinado momento, objeto ou personagem do filme. A imagem não mostra algo objetivamente, mas significa aquilo que está contido em cada uma das representações. Essa síntese é o que desloca o cinema da esfera da ação para a da significação, do entendimento. Eisenstein se refere a Outubro mais como um ensaio visual de alguns temas relativos à Revolução do que a representação dos fatos históricos ocorridos em outubro de 1917. Nesse sentido pode-se dizer, como sugere Machado, que a mesa de montagem era para ele o equivalente moderno da antiga mesa de trabalho do escritor ou filósofo, onde o pensamento se constituía, a partir da elaboração das anotações. Nessa concepção de filme-ensaio a verdade não depende de nenhum “registro” imaculado do real, mas de um processo de busca e indagação conceitual.

Eisenstein se opõe ao equilíbrio e à harmonia próprios de uma estética aristotélica, no fundo assumida por Kulechov e Pudovkin, que defendem um cinema sem ambigüidades, com ordem e clareza. Estes também serão atacados porque em seus filmes ocorre uma progressão linear, um plano se acrescentando ao outro, numa construção “tijolo a tijolo”, enquanto que para Eiseinstein, a perspectiva correta é produzir choques – um plano conflitando com o outro para arrancar o espectador da “atitude cotidiana” (XAVIER, 2005, p.133). É necessário desnaturalizar os elementos extraídos do espaço cotidiano a partir da combinação das representações em uma unidade complexa, apontando para um sentido não contido nos componentes, mas no seu confronto. O cinema antinaturalismo baseado na montagem desdobra-se na proposta do cinema intelectual que na sua formulação define-se em oposição ao cinema narrativo clássico.

Eisenstein propõe um cinema que “pensa por imagens” ao invés de “narrar por imagens”, havendo a possibilidade de uma outra leitura que não a leitura naturalista que vincula as semelhanças de cada imagem às aparências do real. Penso que os filmes eisensteinianos não apontam para o fim da narratividade, mas representam a abertura para novas possibilidades no domínio da narração. Entendendo “narração” como fluxo constitutivo da memória, dentro de uma concepção benjaminiana na qual a história é também construída com o mesmo material de que é feito o imaginário. Nesse sentido lembro, aqui, o crítico de cinema Jean Claude Bernardet (2009), em um comentário seu sobre o filme FIVE (2003), do cineasta iraniano Abbas Kiarostami, quando nos chama atenção para “[...] o fato de não conseguirmos colocar palavras sobre o pensamento plástico ou o cinematográfico não implica que não haja pensamento ou sentido ou significação. Há. Só que é um pensamento de que as palavras não dão conta.” Ou seja, “pensar por imagens” em uma narrativa fílmica exige-se que se tenha outra leitura que não aquela dos textos escritos ou do cinema naturalista. Os códigos são outros; são feitas conexões que nos levam a desenvolver um pensamento cinematográfico do filme.

Com relação a esse pensamento cinematográfico Eisenstein formulou as suas teses sobre montagem e tipagem utilizando elementos particulares da cultura oriental, especificamente a japonesa. Desde o teatro Kabuki, passando pelos haikais (poemas curtos tradicionais da língua nipônica), até os ideogramas, essas expressões japonesas profundamente ligadas ao sentido da visão. Esses elementos serviram como fonte inesgotável para suas articulações teóricas a respeito da arte das imagens em movimento. Ele atribuía aos japoneses a capacidade e o domínio da técnica de “[...] reduzir percepções visuais e auditivas a um denominador comum” (EISENSTEIN, 1990, p.31). A arte de construir uma imagem que seja capaz de encerrar, em si, um conceito, estabelece, para a teoria da montagem intelectual de Eisenstein, um ponto de partida. Assim como o Kabuki, com sua dinâmica de cena e as expressões tipificadoras das personagens, domina essa técnica, os ideogramas (japoneses ou chineses) são o exemplo máximo da junção de duas partes que formam não a sua soma, mas um produto diferente. Algo semelhante ao amplo sentido que Benjamin deu ao conceito de mimese, como nos diz Gagnebin: “[...] reuniões entre dois instantes que se juntam para formar uma nova intensidade e, talvez, possibilitar a eclosão de um verdadeiro outro” (GAGNEBIN, 1999, P.103), uma nova temporalidade que, em Eisenstein, é instaurada pelo cinema intelectual, em um cinema que “pensa por imagens”.

O cinema intelectual afirma-se como a explicitação de uma modalidade de raciocínio. O modelo literário de James Joyce se mostra de fundamental importância para Eisenstein que nele vê, segundo Xavier, um estimulante exemplo de “exposição de um processo mental” (XAVIER, 2005, p.135), ou do “pensamento dialético em processo”. Ele não pretendia transformar o texto de O Capital de Marx em imagens, mas intencionava fazer com o texto de Marx o que fizera em Outubro, um ensaio cinematográfico com os temas da Revolução de 1917. Desse modo estaria levando para o cinema o método de pensamento dialético. A idéia de montagem como explicitação do raciocínio ou método de pensar está intrinsecamente relacionada ao paradigma da montagem como processo de pensamento em geral. Afinal, no cinema de Eisenstein “O todo é o conceito. Por isso o cinema é dito ‘cinema intelectual’, ‘montagem pensamento’. A montagem é no pensamento o próprio ‘processo intelectual’” (DELEUZE, 2005, p.191). Ou, nas palavras do poeta Waly Salomão: “A memória é uma ilha de edição”.

Vygotsky e a sua teoria do “monólogo interior” terão influências sobre Eisenstein que procura trabalhar essa teoria no terreno cinematográfico. Acreditando que o cinema seria por excelência o veículo que explicitaria um processo mental em sua interioridade, esclarece: “que a forma estrutura é a reconstrução das leis do processo de pensamento. [...] Entretanto, isto de modo algum implica em que o pensar pela montagem deva necessariamente ter o processo de pensamento como seu tema.” (EISENSTEIN, 1990, p.106). Em outras palavras, o pensamento explicitado numa forma de montagem cinematográfica não precisa estar situado no espaço-tempo da consciência de uma personagem da ficção. Ele pode ser simplesmente o pensamento do filme ou, como prefere Xavier, o pensamento exposto pelo discurso-filme.

Em Eisenstein os novos procedimentos de montagem geram um novo discurso narrativo, no qual o narrador cria ambigüidades, interrogações. O discurso das imagens passa a corresponder a um entrelaçado de temporalidades, intenções, valores. Desse modo, o cinema eisesnteiniano estabelece um marco na história do cinema, a partir do qual é possível compreender muito do projeto imagético das vanguardas históricas e do pensamento cinematográfico do século XX.

Algumas considerações

Benjamin sustenta que a experiência, ou o nosso “estar no mundo” não podem ser arquivados: manifestam-se na vida, exigem o Acontecimento. Aí, o passado se faz no presente. No universo benjaminiano, a figura alegórica do colecionador, assim como a do flaneur, busca a fascinação do mundo. Sua experiência é da compilação e, também, do diálogo com a multiplicidade, tornando contemporâneos os objetos que reúne – ao concebê-los dentro de um outro tempo e de diferentes espacialidades. O que faz decisivo o ato de colecionar, pois o objeto é separado de suas funções originárias, remetido a uma constelação histórica criada pelo colecionador, revelando conexões entre coisas que guardam correspondências e semelhanças.

Assim, o colecionador parte do princípio da montagem ao reunir os fragmentos da história em uma nova configuração da experiência. Como no cinema eisensteiniano, a coleção torna-se uma estrada-texto na qual rompe-se com o comando dos objetos e com seu caráter meramente utilitário. Instalam-se múltiplos sentidos em uma nova ordem que abre várias perspectivas e ângulos novos de conhecimento. Nesse contexto a coleção, assim como o filme, é uma obra inacabada e inacabável, um labirinto rizomático com múltiplas entradas, milhares de passagens.

Por ter experimentado as possibilidades do cinema como obra aberta à construção de idéias, Eisenstein foi criticado tanto pelos construtivistas e intelectuais de sua época quanto pelo corpo burocrático preso aos dogmas do partido: “O escândalo de Eisenstein seria falar em nome da dialética, abraçar a filosofia da práxis e montar um sistema de representação que caminharia em sentido contrário, figurando os processos numa forma ‘intelectualista’” (XAVIER, 2006, p.370).

O cinema revolucionário de Eisenstein incomodou a muitos, pois ao destruir a idéia de representação, ao se negar a fornecer a imagem transparente, produz um conhecimento sobre ele mesmo, e sobre as questões da realidade abordada nas imagens fílmicas. À mistificação da janela que se abre para o real (dado natural), é preciso responder com a materialidade da imagem, com um cinema que retira o mofo dos movimentos da história oficializada, re-instaurando uma nova ordem ao desestabilizar o pensamento de que tudo está feito e acabado.


Referências bibliográficas


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BENJAMIN, Walter. Sobre Arte, Técnica Linguagem e Política. Lisboa: Relógio D’água Editores, 1992.

_____________. Passagens. Belo Horizonte, MG: Editora UFMG, 2006.

BORGES, Jorge Luiz. Obras completas de Jorge Luiz Borges, volume 2. São Paulo: Globo, 1999.

CARRIÈRE, Jean Claude. A linguagem secreta do cinema. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.

DELEUZE, Gilles. A imagem-movimento. São Paulo: Editora Brasiliense, 1983.

______________. A imagem-tempo. São Paulo: Editora Brasiliense, 2005.

EISENSTEIN, S. M. A forma do Filme. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1990.

______________. Montagem de Atrações in:. The Drama Review. New York University, março, 1974.

GAGNEBIN, Jeanne Marie. Sete aulas sobre linguagem, memória e história. São Paulo: Imago, 1999

_______________. História e narração em Walter Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 2007.

HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos: o breve século XX. 1914 – 1991. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

SALOMÃO, Waly. Algaravias. São Paulo: Editora 34, 1996.

SCHARF, Aaron. Construtivismo in: STANGOS, Nikos (org.). Conceitos da arte moderna. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1994.

XAVIER, Ismail. O discurso cinematográfico: opacidade e transparência. São Paulo: Paz e Terra, 2005.

________________. Eisenstein: a construção do pensamento por imagens in: NOVAES, Adauto (org.). Artepensamento. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

________________. A experiência do cinema. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2003.



Outras fontes

MACHADO, Arlindo. O filme-ensaio. Disponível em:
Acesso em 22 jul 2009.


BERNARDET, Jean Claude. FIVE de Kiarostami VII: o pensamento cinematográfico. Disponível em: < http://jcbernardet.blog.uol.com.br/>
Acesso em 22 jul 2009.

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